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sábado, 4 de outubro de 2008

Sufismo


Mística islâmica ou Sufismo é a dimensão esotérica da tradição muçulmana. Segundo a Filosofia Perene de René Guénon e Frithjof Schuon, toda grande religião possui duas dimensões, a exotérica e a esotérica. A primeira diz respeito à "ação" e a segunda à "contemplação"; a primeira às leis e ordenamentos exteriores; a segunda, à interioridade e à mística.
Assim sendo, a mística islâmica tem sua origem com a revelação maometana da Península Arábica no século VII DC. O Sufismo, portanto, origina-se com o profeta Maomé e com os primeiros califas do Islã, sobretudo Abu Bakr e Ali. Muitas ordens sufis (turuq, singular: tariqa) têm estes dois califas e místicos como as figuras iniciais de suas silsilás (termo árabe que constitui uma "árvore genealógica" assegurando a autêntica continuidade de determinado mestre sufi e de sua confraria).
Entre as mais conhecidas confrarias sufis, destacam-se a Mevlevia, estabelecida por Rumi em Kônia, na Turquia, no século XIII; a Shadilia, estabelecida também no século XIII pelo cheikh ("mestre espiritual", na linguagem do Sufismo) magrebino Shadili; a tariqa Alawita, fundada pelo cheikh Ahmad al-Alawi no início do século XX, em Mostaganem, Argélia.
Entre os grandes representantes da mística islâmica, incluem-se o místico al-Hallaj, martirizado em Bagdá no século X por ter dito, em estado de êxtase, "Eu sou a Verdade"; o sufi metafísico Ibn Arabi (século XIII), autor de diversas obras influentes, entre elas as "Revelações de Meca"; Al-Ghazali, Rumi, Rabiah Adawiah, Attar, os cheikhs Shadili, Darqawi, al-Alawi, entre outros.
Quando o homem se confunde com Deus
Caminho místico e esotérico do Islã, o sufismo tem por objetivo purificar o coração dos homens a fim de permitir que aquele que o pratica venha a atingir a união total com Deus Débora F. Lerrer
Débora Lerrer
Cerimônia do zikr em São Paulo
O sufismo é o caminho místico do Islã que, como muitas outras religiões, possui um aspecto exterior e outro interior. O aspecto exterior é aquele da Lei revelada, a Sharia, que se ocupa da observância dos ritos e dos atos de devoção. O aspecto interior existe através do sufismo, designado na doutrina islâmica pelo termo árabe tasawwuf, cujo objetivo é purificar o coração a fim de permitir que aquele que o pratica venha a se confundir com Deus.
O sufismo se apresenta como uma seqüência de experiências pessoais que compõem uma busca espiritual interior, visando permitir que o homem realize a unidade com Deus e reencontre sua natureza de "homem perfeito", recordando sua origem divina e espiritual.
Conta-se que quando Deus criou o homem, ele deixou uma parte dele em seu coração - e é justamente através do coração que o homem pode acessar Deus e sua essência divina.
"Alá soprou na alma humana o seu próprio espírito, seu coração, que é o espírito divino, dando vida a esse corpo e conferindo um lugar privilegiado na criação. Só que a alma humana esqueceu da sua origem", diz o sheik brasileiro Muhammad Ragip, que representa no Brasil a ordem sufi Halveti AI-Jerrahi.
"Nós entendemos a religião como um método de despertar em nossos corações o amor a Deus. Compreendemos que a grande carência humana, esse vazio que permeia todo ser humano que sai em busca de um sentido para sua vida, é fruto da desconexão com essa origem divina", diz Ragip.
Para recordar essa origem divina, os sufis praticam o zikr, termo que significa, ao mesmo tempo, "recordação", "menção", "lembrança", "evocação", "rememoração". O zikr se baseia na repetição de atributos e nomes divinos de Alá, e é também o nome dado às cerimônias sufi, repletas de orações, músicas e, dependendo da ordem sufi, a famosa dança cósmica dos dervixes rodopiadores. A prática do zikr pode ser individual e deve prosseguir até que o nome divino se aposse do coração daquele que o invoca.
"Um sufi é aquele em que cada palavra e cada ato que pratica corresponde a um estado interior. Ele é aquele que conseguiu unificar os dois mundos. Isso é o que diz uma citação famosa de um mestre sufi", conta Sergio Rizek, editor e tradutor da Attar Editorial, que tem publicado autores clássicos sufis - entre eles Rumi e Attar - e que agora está lançando Gulstan, de Saadi de Shiraz.
Segundo Rizek, esse objetivo é a realização do grande jihad islâmico. "A palavra jihad passou por um alto grau de corrupção. Ela não quer dizer guerra santa, e sim a unificação entre os dois mundos: a interioridade e a intenção declarada com atos e palavras. O processo de unificação entre oração, palavra e atos é que é o grande jihad", explica o editor.
Recordar Deus até submergir nele
Débora Lerrer
Sheik Ragip: abordagem amorosa da religião
Assim como em outras religiões orientais, o objetivo da experiência espiritual sufi é a identidade do visível com o invisível, do ser com o não-ser. No sufismo, o longo aprendizado da via conduz o homem ao despojamento interior a fim de possibilitar um estado de total e livre interpenetração entre ele e o divino, entre a aparência (que é seu mundo visível) e a Realidade última (Deus).
Para isso, ele tem que se libertar de sua natureza terrestre e reencontrar a natureza divina, que tem sede no fundo de seu coração.Para o sufismo, é dentro de cada um que se deve buscar a essência divina da Realidade. O próprio Profeta Maomé já havia dito que aquele que conhecia a si mesmo, conhecia a seu senhor, conhecia Alá.
A estrutura do caminho sufi se baseia na sharia, as Leis escritas presentes no Alcorão; na tarika, o caminho espiritual, escola ou ordem sufi; e na hakkikat, que literalmente significa Realidade ou Verdade, e que quer dizer o sentido espiritual que se coloca além da enunciação exterior da Lei.
Essa estrutura é representada por um círculo de cuja circunferência saem raios que se encontram no centro. A linha que forma o círculo é a sharia, as leis externas ou religiões normativas. Os raios são as tarika, os diversos métodos de busca espiritual - pois, como diz o mestre sufi, "há tantos caminhos quanto corações". No centro, onde se encontram todos esses diferentes raios, está a hakkikat, ou verdade incondicional e eterna.
No sufismo, embora o caminho místico seja considerado individual, ele é necessariamente feito em conjunto com uma comunidade, em uma tarika, uma ordem, que costuma se reunir em um local chamado tekkia, para realizar suas cerimônias. O islamismo se baseia na submissão voluntária à vontade de Deus e no reconhecimento e afirmação da unidade divina. De acordo com o sheik Ragip, o que distingue um sufista, o dervixe, de um crente comum, é que ele tem uma "abordagem mais amorosa da religião". O dervixe pratica tudo que um muçulmano pratica, mas, segundo Risek, enquanto o último tem que se lembrar de Deus nas cinco orações diárias obrigatórias, o sufi procura "transformar a própria respiração em prece", para recordar-se constantemente de Deus. "O ideal é fazer o zikr o tempo todo", diz ele.
Para atingir o mais alto grau de transparência e percepção, o sufista deve adquirir as virtudes necessárias à transformação de sua alma. Ele é conduzido a isso conformando-se à disciplina da tarika, a escola de um mestre particular, que, através dos "estágios espirituais", o leva a encarar as coisas deste mundo como superficiais e o "cura" de um certo número de comportamentos. O ideal sufi é transcender ao domínio do ego e das paixões que ele provoca.
Entre as virtudes buscadas pelos dervixes ocupam a primeira fila a humildade, a paciência, a caridade, a fidelidade, a confiança e a mais elevada de todas: a veracidade. Para os sufistas, as virtudes não são somente atos ou qualidades exteriores da vontade, mas também, e antes de tudo, modos de ser. Elas são atributos do homem perfeito e, assim, têm sua origem na própria realidade divina.
Diante de Deus, na primeira fila: a história do sufismo
Débora Lerrer
Tekkia: lugar de oração e retiro
O nome sufi é de origem incerta. Provavelmente é derivado da palavra saf (puro) contido no termo tasawwuf, e foi designado aos dervixes por causa da pureza de seu íntimo. Entretanto, costumava-se vincular a origem da palavra sufismo à vestimenta de lã ranca, suf, usada pelos primeiros místicos em sinal de humildade, e pelos primeiros discípulos do profeta Maomé, conhecidos como "os companheiros com manto de lã". Outros tratados definem que os sufistas foram chamados por esse nome por estarem diante de Deus, na primeira fila (saffa).
Embora considere-se que a corrente mística sufista nasceu já nos primeiros tempos do Islã, representada por uma sucessão de sábios e ascetas que surgiram no Iraque, já no século VIII, ela só foi realmente institucionalizada a partir dos séculos X e XI, a partir da obra de alguns teóricos. E foi somente no século XII que surgiram as primeiras grandes ordens, ou tarikas.
No princípio os mestres reuniam em torno de si alguns discípulos, que iam de um lugar para outro em busca do ensinamento de uma via espiritual. Em seguida, foram fundados conventos ou centros de oração destinados a abrigar os mestres e seus alunos. Alguns deles abrigavam vida monástica, o que não supunha de modo algum o celibato, já que a maior parte dos grandes místicos era casado. Tratavam-se quase sempre de um lugar privilegiado para a oração e o retiro. Praticavam-se aí o zikr, a meditação, o jejum, a iniciação, vigílias piedosas, em suma, o conjunto dos exercícios sufistas. Esses centros recebiam tanto homens como mulheres e sua porta era largamente aberta para o exterior. Além disso, os membros, uma vez admitidos, eram considerados todos irmãos e se encontravam em pé de igualdade.
Até o século XII esses conventos eram isolados. A partir de então, eles se reagruparam em ordens mais amplas, reconhecendo um mestre comum e praticando uma disciplina e um método idênticos, a tarika.
As ordens se desenvolveram onde quer que o Islã estivesse presente. As mais importantes foram fundadas entre os séculos XII e XIV, e todas elas sofreram influência dos grandes místicos, que, no entanto, tinham vivido bem antes. É notadamente através dessas famosas cadeias ou genealogias espirituais que essas influências aparecem abertamente. Ao longo dos séculos, muitas vezes os dervixes se colidiram com o islamismo ortodoxo e suas práticas foram proscritas - como ainda é o caso hoje em dia em alguns países muçulmanos.
No Brasil, diz a história que, no século XIX, um certo José Felipe Soares, que vivia em Santos, partiu em busca do conhecimento sufi, o que o levou até o Marrocos. Lá chegando, Soares foi recebido por um sheik que ficou muito espantado com sua trajetória. "Você não precisava ter vindo até aqui para conhecer o sufismo, pois no seu país você pode procurar um dos pilares da nossa tradição: o Negro Adriano, o quitandeiro".
Talvez no Brasil o sufismo possa ter deitado raízes muito mais profundas do que se pode supor, já que a religião muçulmana chegou até aqui primeiramente através dos escravos Malês. De qualquer modo, hoje em dia, sabe-se da presença de algumas ordens: a Chisti, muito difundida na Índia, a Naqshabandiya, que existe aqui há 25 anos, a Surawaardi, Shadhiliya, a Ordem Sufi Internacional e a Halveti AI-Jerrahi.
Principais mestres
Ibin Arabi - Considerado o maior gênio místico da história do Islã, Ibin Arabi nasceu em Múrcia, na Andaluzia, em 1165. Estudou as tradições e jurisprudência em Sevilha e, em 1194, foi para Tunis, onde foi iniciado no sufismo. Oito anos mais tarde, empreendeu uma viagem ao Oriente. Depois de estadias mais ou menos longas em diferentes lugares - Meca, Cairo, Bagdá, Alep, Konia - e de percorrer o Iraque, a Anatólia e a Ásia Menor, fixou-se em Damasco, onde morreu em 1240. É chamado de o "vivificador da religião" ou de "o maior dos mestres", pois deixou obra considerável que dá testemunho de um espírito ao mesmo tempo sintético e profundo. A ele são atribuídas nada menos que 800 obras. O número pode ser meio exagerado, mas não resta dúvida de que Ibin Arabi era prolífico. Pouco antes de sua morte ele mesmo organizara uma lista de suas obras, que totalizavam 270. No entanto, muito poucas chegaram até nós. As duas mais importantes são as Revelações de Meca e a Sabedoria dos Profetas.
Al Ghazzali - Nasceu e morreu em Tus (1058-1111), no leste do Irã. Recebeu formação de teólogo e de jurista ortodoxo, o que lhe permitiu ser nomeado diretor da universidade Nizamiyya de Bagdá. Chegou a ser conselheiro do califa de Bagdá, desempenhando um papel não-desprezível no contexto das tensões religiosas da época. No ápice de sua carreira, ele renuncia à sua cátedra e deixa Bagdá para se dirigir a diversos lugares santos do Islã, da Síria, em Meca e em Jerusalém. Aspirando a uma experiência mais pessoal, não hesita em praticar a dúvida e, em particular, questionar o uso da razão como única abertura para o conhecimento místico. Dá longas explicações a esse respeito em seu livro Erro e Libertação, onde conclui pela primazia da experiência intuitiva na abordagem mística. É considerado o maior teórico do sufismo. Suas obras tendem a reconciliar - nos planos moral, místico e metafísico - a via sufista e a ortodoxia islâmica.
Rumi: o grande poeta místico do sufismo
Rumi - Nascido em Balkh, no Korasã, em 1207, o grande poeta Rumi é filho do eminente teólogo Baha al-Din Walad, discípulo de Kubra, outro grande mestre sufi. Diante do iminente risco de uma invasão mongol, a famíla deixou Balkh e depois de se fixarem temporariamente em alguns locais acabaram se instalando em Konia. Depois da morte de seu pai, quando tinha 24 anos, Rumi foi estudar em Alep, depois em Damasco, onde permaneceu vários anos e encontrou Ibin Arabi. Ao voltar a Konia, em 1244, ele encontrou Shams de Tabriz, que se tornou seu mestre espiritual e a quem amou profundamente. Esse estranho dervixe errante teria então uns 60 anos de idade e tinha oferecido a Deus, segundo dizem, sua própria vida em troca do encontro com um de seus santos. Shams e Rumi permaneceram juntos até 1247, quando Shams desapareceu (talvez assassinado por discípulos de Rumi, ciumentos da ascendência que ele exercia sobre seu mestre). Inconsolável, Rumi escreveu Poemas Místicos, em homenagem a Shams, que é uma compilação de poemas de "amor e de luto". Para Rumi, o amor que ele sentia por Shams personificava o amor divino. Depois do desaparecimento de Shams, Rumi criou o a dança cósmica, o sama, praticada pela ordem sufi Mevlevi, conhecida como a ordem dos dervixes rodopiadores. Sergio Rizek explica que essa dança se inspira no movimento dos astros. "Assim como todos os corpos giram por amor ao sol, os dervixes também giram por amor ao divino, que muitas vezes precisa de uma contrapartida humana, pois no Islã o amor humano é símbolo e reflexo do amor divino".
A obra de Rumi marcou profundamente o pensamento religioso do Islã. Muitos o consideram o maior poeta místico de todos os tempos. Entre suas principais obras estão o Rubaiyat, os Poemas Místicos, editado em 1996 pela Attar Editorial, e o Mathanawi, um vasto poema de 45 mil versos. Attar - A vida do grande poeta persa que foi Attar permanece um profundo mistério. Sabe-se que nasceu em Neshapur, na província de Korassã, entre 1120 e 1140, e que morreu entre 1200 e 1230. Conta-se que trabalhou toda a vida com o florescente comércio de perfumes, ungüentos e especiarias herdado de seu pai, e por isso tornou-se Attar, que significa "aquele que faz o comércio de perfumes". Diversas lendas circulam a respeito das circunstâncias de sua conversão. Em uma delas, um mendigo apareceu em sua loja e tendo a esmola recusada o perguntou: "Como irás morrer?", ao que Attar respondeu: "Da mesma maneira que tu". Então o mendigo se estendeu sobre o solo e exalou seu último suspiro. Verdade ou não, o fato é que Attar certamente deve ter passado por uma experiência decisiva para ter se iniciado no sufismo. A ele são atribuídas diversas obras - poucas, entretanto, tem sua autoria comprovada. Entre as mais célebres estão Memorial dos Santos, O Livro Divino, O Livro dos Conselhos, Os Livro dos Segredos e a que é talvez a sua obra-prima: A Linguagem dos Pássaros, um célebre poema iniciático que mostra o caminho da alma até o aniquilamento do Ser Revelado

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